1 Introdução
1.1 Razão
“Amarás, pois, ao Senhor teu Deus de todo o teu coração - bbl - de toda a tua alma e de todas as tuas forças”. (Deuteronômio 6.5)[1].“Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todas as tuas forças e de todo o teu entendimento (διανοιας)” (Lucas 10.27)[2].
“Rogo-vos pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos como um sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional (λογικὴν). E não vos conformeis a este mundo, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente (νοός), para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus”. (Romanos 12.1-2)[3].
Todas estas citações são da Bíblia Sagrada cristã. Destaco em negrito alguns termos das línguas originais dos manuscritos hebraico e grego.
O primeiro deles, que em Deuteronômio foi traduzido por coração, é o termo hebraico lebab, cujo significado é: homem interior, mente, vontade, conhecimento, pensamento, reflexão, resolução, determinação (de vontade). Os demais são termo gregos (do Novo Testamento). Dianoias refere-se à mente, como centro das habilidades intelectuais, emocionais e volitivas. Logikós, é relativo à razão, que concorda ou segue a razão; lógico. E por fim, nous, mente, como a faculdade de perceber, entender e julgar.
Como visto, a própria Bíblia Sagrada nos estimula a usar a razão para se conhecer Deus. Em especial a última referência citada, de Romanos 12, é um apelo do apóstolo Paulo afirmando que para experimentar a boa perfeita e agradável vontade de Deus é preciso usar a razão.
1.2 Fé
O que é fé? Conforme o dicionário eletrônico Priberam é: “(latim fides) adesão absoluta do espírito àquilo que se considera verdadeiro. (...) Estado ou atitude de quem acredita ou tem esperança em algo. = CONFIANÇA"[4]Em grego, o termo é pistis, sendo uma de suas acepções a "convicção da verdade de algo"[5].
Também é dito que fé "é uma palavra que significa ‘confiança’, ‘crença’, ‘credibilidade’. A fé não é um sentimento de total de crença em algo ou alguém, ainda que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a veracidade da proposição em causa"[6].
Por fim, a Bíblia define fé desta forma: “Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem” (Hebreus 11.1)[7].
Assim, estavam certos os filósofos cristãos que buscaram meios de compatibilização entre fé e razão. A Bíblia cristã jamais teve a razão como oposição ou mesmo como impedimento ao exercício da fé.
Os filósofos que cuidaram em compatibilizar a fé cristã com a razão são aqueles que viveram no que período conhecido como Patrística e Escolástica. Os filósofos da Patrística são aqueles que viveram do século I ao V d.C (há quem considere este período sendo estendido até o século VIII d.C.). Os filósofos Escolásticos são os que viveram entre os séculos X até o XIV.
Vale lembrar que as questões de datas são sempre imprecisas. Para Chaui (2000, p.53), a filosofia patrística vai do século I ao VII d.C. Para Junior (2017, p.8) a patrística inicia-se no século III.
“ ‘Patrística’ normalmente abraça os Padres no sentido mais restritivo do termo, isto é, aqueles que escreveram entre o final do século 1, após a redação da maioria das obras que agora compõem o NT e o fim do 8º século”. (HAYKIN, 2012, p. 14).
Vários nomes contribuíram para moldar o pensamento filosófico medieval, mas sem sombra de dúvidas, os dois principais foram Agostinho de Hipona (Patrística)e Tomás de Aquino (Escolástica). Apesar de os dois terem focos diferentes, ambos foram muito bem-sucedidos em seus intentos.
2 Filosofia cristã, ou medieval
A filosofia medieval é aquela que foi desenvolvida durante o período que chamamos de História Medieval. Ela vai do século I ao XIV.Devido à forte influência, e até certo ponto, domínio, da Igreja Cristã no que restou do Império Romano e na Europa, a filosofia estava subordinada à Igreja. Por isso, é correto denominar a filosofia desta época de filosofia cristã. José da Silveira Costa nos diz: “Compreende duas épocas: a primeira, que vai até o século V, conhecida como filosofia patrística; a segunda, que vai do século X ao século XIV, e que corresponde à chamada filosofia escolástica ou medieval” (REZENDE, 1986, p. 88).
A filosofia cristã foi desenvolvida com elementos do helenismo e do judaísmo.
“A religião cristã, embora originária do judaísmo, surge e se desenvolve no contexto do helenismo, e é precisamente da síntese entre o judaísmo, o cristianismo e a cultura grega, que se origina a tradição cultural ocidental de que somos herdeiros até hoje.” (MARCONDES, 2016).
Vale destacar que neste período que chamamos de filosofia medial ou cristã não houve unanimidade em fazer a tentativa de conciliar fé e razão. Muitos apologistas atribuíam à filosofia a culpa por muitas heresias. Entre os pais, Tertuliano se destaca no grupo daqueles que não viam meios de compatibilização. Este teria questionado: “que Jerusalém tem a ver com Atenas” (Tertuliano apud LEBER, 2015, p. 5).
A importância da correspondência entre a filosofia grega e a fé cristã sempre foi tema controverso, não encontrando consenso fácil em círculos filosóficos e tampouco em círculos teológicos. Desde os tempos antigos, ainda nos primórdios do cristianismo, havia posições díspares sobre o problema (LEBER, 2015, p. 4).
Todavia, prevaleceu o pensamento daqueles que contribuíram para a compatibilização da filosofia com a fé cristã. Segundo Marcondes, Fílon de Alexandria, ou Fílon, o Judeu, como o nome indica, um judeu helenizado que viveu em cerca de 25 a.C. a 50 d.C. é “o primeiro representante significativo desta tradição” (MARCONDES, 2016). Marcondes informa que Fílon escreveu comentários à Torah.
2.1 Patrística
O termo vem do latim, pater, que quer dizer pai, padre. “Tanto designa o período referente aos pais da igreja quanto as ideias características que se desenvolveram ao longo deste período” (MCGRATH, 2005, p. 41).A Patrística inicia-se no século II. O cristianismo tem seu início com os Apóstolos[8], cuja Tradição Cristã diz que o último deles, João, morreu provavelmente no ano 100 d.C. Estes Apóstolos seriam os líderes da primeira geração de cristãos. A partir da segunda geração os líderes passaram a ser chamados de pai.
Tantos os Apóstolos como os pais são os líderes responsáveis pela consolidação dos ensinos de Cristo. A diferença é que os pais edificaram sobre o que os Apóstolos escreveram. Portanto, é necessário considerar os Apóstolos em um grau hierárquico maior. Em teologia isto é chamado de unção apostólica, que não foi transmitida, segundo a teologia reformada protestante, à segunda geração.
Há quem segmente a Patrística tendo como referência o seu mais proeminente pai: Agostinho de Hipona. “Por causa da grandeza de Agostinho, costuma-se dividir a patrística em três períodos: antes de Agostinho, a época de Agostinho e depois de Agostinho” (TRINCHES et al. p. 80). Outras classificações de segmentação ou sistematização separam entre os ocidentais ou alexandrinos e orientais ou atioquiana.
Os pais pré-agostinianos estão divididos em grupos de acordo com algumas ênfases:
- Apostólicos.
- Apologistas.
- Polemistas.
2.1.1 Pais apostólicos
Aqueles que foram discípulos diretos de alguns Apóstolo ou que foram seus contemporâneos. Seus escritos exortaram ou edificaram a Igreja.- Clemente de Roma (c. 30-100). Defendeu a sucessão apostólica e é considerado o 4º Papa pela Igreja Católica Apostólica Romana. Talvez este o Clemente a quem Paulo se refere em sua carta aos filipenses.
- Inácio (110). Foi martirizado durante o reinado de Trajano. O primeiro a fazer distinção entre bispo e presbítero.
- Papias (60-130) e Policarpo (69-155) foram discípulos de João, o último Apóstolo a morrer.
2.1.2 Pais Apologistas
São aqueles que defenderam a fé cristã ou tentaram dar um esclarecimento racional aos imperadores e reis pagãos.- Justino Mártir (100-165). Defendeu o cristianismo contra o marcionismo, estudou filosofia e foi martirizado em Roma.
- Atenágoras (sec. II). Na sua defesa sobre a ressurreição dos mortos fica evidente a influência platônica em suas ideias.
2.1.3 Pais Polemistas
Os polemistas, ou os pais do terceiro século são os heróis cristãos que defenderam a Igreja de “ataques” internos em sua doutrina: as heresias e seus falsos mestres.- Irineu (sec.III). Defendeu o cristianismo do gnosticismo. Escreveu Contra as heresias.
- Clemente de Alexandria (150-215). Estudou filosofia e realçada o conceito de Logos. Autor de Exortação aos Gentios.
- Tertuliano (160-220). Considerado o pai da teologia latina e da ortodoxia das doutrinas da Trindade e da pessoa de Jesus Cristo.
2.1.4 Agostinho de Hipona
Para desmentir-me a respeito desta impossível convivência da Fé com a Razão, vem logo santo Agostinho, o maior representante da Patrística cristã. É bom deixar bem claro, desde já, que nunca houve alguém mais racional e mais religioso do que santo Agostinho. (CRESCENZO, 2002, p. 10).
O testemunho de Crescenzo é importante pois trata-se de um autor, no mínimo, agnóstico. Sem dúvida alguma Agostinho é quase uma unanimidade quando se fala de um pensador que foi o mais competente em demonstrar que é preciso crer para compreender.
O bispo de Hipona era africano de nascença, mulato de não mui alta estatura, da cidade de Tagaste (atualmente Souk-Ahras, na Argélia), localizada na Numídia. Nasceu em 13 de novembro de 354, filho de Patrício, soldado romano pagão, que converteu-se ao cristianismo pouco antes de morrer, e Monica, cristã fiel, atualmente canonizada como Santa Mônica. Agostinho, que por ser cidadão romano também recebeu o prenome de Aurélio, tinha um irmão e uma irmã: “Navígio, que morreu jovem, e uma irmã que, tendo ficado viúva, dirigiu um mosteiro feminino” (FERREIRA, 2014, p. 82).
Agostinho levou uma vida devassa. Em um de seus mais importantes livros, Confissões, ele próprio relata seu passado de vergonhas: mentiroso, enganador, ladrão, fornicador.
Ele teve um filho bastardo, Adeodato, com uma mulher mais velha com quem nunca reconheceu a união. Certamente muito a contragosto de sua mãe, que o queria casado com uma jovem de nobre nascimento, o que quase se concretizou não fosse a menina jovem demais.
Segundo FERREIRA (2014), Agostinho vai com 11 anos estudar em Madura, e com 17, muda-se para Cartago estudar Retórica, após breve retorno a Tagaste.
Em Cartago une-se aos maniqueístas, porém não muito tempo depois decepciona-se com as falsas respostas desta seita sobre o problema do bem e do mal. Novamente retorna a Tagaste agora como professor de Gramática.
Agostinho vai para Roma e depois para Milão. Inicia seus estudos com o neoplatonismo a partir dos escritos de Plotino, que influenciará grandemente seus pensamentos.
Em Milão conhece o bispo local, Ambrósio, por quem nutre profunda admiração. Inicialmente, vai ouvi-lo mais por causa da brilhante retórica do bispo do que de sua mensagem cristã. Neste período, Mônica vai morar com o filho em Milão.
Por um tempo Agostinho vive a crise de sua vida “pagã” e sua consciência cristã. As palavras de Ambrósio certamente penetram em seu coração, mas seu corpo ainda clamava pela vida de pecados. Seria o que a Bíblia define como luta entre a carne e o espírito[9].
“Deus meu Senhor, dá-me a castidade e a continência, mas não de imediato.” (Confis.,VIII, 7)Finalmente, ocorre a conversão propriamente dita. Isto foi em 15 de agosto de 386. Ele mesmo a descreve assim:
“Ai de mim, não consigo dormir uma noite sequer sozinho.” (Confis., VI, 15)
“Do desvio da vontade nasce a devassidão, da devassidão o hábito, e do hábito a
necessidade.”
“Ame, e depois faça o que bem quiser.”
“Atrevi-me a conceber desejos impuros até mesmo entre as paredes da Tua Igreja.” (Agostinho apud COSTA, 2002, p.11).
Mas logo que esta profunda reflexão tirou da profundeza de minha alma, e expôs toda minha miséria à vista de meu coração, caiu sobre mim enorme tormenta, trazendo copiosa torrente de lágrimas. E para dar-lhe toda vazão com seus gemidos, afastei-me de Alípio; a solidão parecia-me mais adequada e me afastei o mais longe possível, para que sua presença não me fosse embaraçosa. Tal era o estado em que encontrava, e Alípio percebeu-o, pois lhe disse alguma coisa com um timbre de voz embargado de lágrimas que me denunciou. Alípio, atônito, continuou no lugar em que estávamos sentados; mas eu, não sei como, me retirei para a sombra de uma figueira, e dei vazão às lágrimas; e dois rios brotaram de meus olhos, sacrifício agradável a teu coração. E embora não com estes termos, mas com o mesmo sentido, muitas coisas te disse como esta: E tu, Senhor, até quando? Até quando, Senhor, hás de estar irritado! Esquece-te de minhas iniqüidades (sic) passadas! Sentia-me ainda preso a elas, e gemia, e lamentava: “Até quando? Até quando direi amanhã, amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora às minhas torpezas?” Assim falava, e chorava oprimido pela mais amarga dor do meu coração. Mas eis que, de repente, ouço da casa vizinha uma voz, de menino ou menina, não sei, que cantava e repetia muitas vezes: “Toma e lê, toma e lê” (Agostinho)
Agostinho apressadamente pega porção da Bíblia que tinha em mãos lê:
sicut in die honeste ambulemus non in comesationibus et ebrietatibus non in cubilibus et inpudicitiis non in contentione et æmulatione sed induite Dominum Jesum Christum et carnis curam ne feceritis in desideriis[10].Em um português moderno, o trecho bíblico acima, que se encontra na epístola de Paulo aos Romanos, capítulo 13, versículos 13 e 14 podem ser traduzidos assim:
Vivamos decentemente, como pessoas que vivem na luz do dia. Nada de farras ou bebedeiras, nem imoralidade ou indecência, nem brigas ou ciúmes. Mas tenham as qualidades que o Senhor Jesus Cristo tem e não procurem satisfazer os maus desejos da natureza humana de vocês.[11]
Sobre a existência de Deus, Agostinho demonstra que sua pesquisa é justamente por fé. Assim, a compatibilização entre fé e razão fica demonstrada. Para o doutor não havia nenhum ser humano sem fé. Até mesmo os pagãos.
Em seu livro Do livre Arbítrio ele argumentará que a única certeza que se pode ter é da existência pessoal. Se nada mais existe, eu existo. Não nos lembra Descartes com o seu cogito ergo sum?
O doutor elabora uma hierarquia dos seres. Temos seres que meramente existem (pedra), as que existem e vivem (animais) e as que existem, vivem e tem consciência de que vivem (homem). Da mesma forma, o homem reproduz em si esta hierarquia em sua alma. A alma humana tem os sentidos (tato, visão), o sentido interior (capacidade de desejar e não desejar) e a razão.
Nesta hierarquia dos seres - do menos para o mais, Agostinho concluiu que existem graus de perfeição. Toda a natureza, ou a criação apresenta estes níveis hierárquicos. Logo, tem que haver o perfeito absoluto. Assim, chegamos a uma Verdade absoluta, ou Deus.
Como assim? Existem verdades que são: universais, imutáveis, necessárias. Por exemplo a matemática. 2+2=4 aqui em qualquer lugar deste universo.
Agostinho, muitas vezes chamado de o doutor de Hipona, é sem dúvida uma mente privilegiada. A maior de seu tempo, com certeza. Uma das maiores do mundo na opinião de especialistas.
“Sua capacidade intelectual nos legou algumas obras-primas: Confissões, A Trindade, A doutrina crista e A cidade de Deus (...) diálogos, comentário cíclicos, cartas., sermões, tratados sobre diversos temas teológicos, filosóficos, dogmáticos, morais espirituais, pastorais e históricos” (FERREIRA, 2014, p. 88).Agostinho morre em na cidade de Hipona, aos 75 anos, em 28 de agosto de 430. Ele foi canonizado pela Igreja Católica Apostólica Romana em 1292, sob o pontifício do Para Bonifácio VIII.
2.2 Escolástica
O termo scholasticus, quer dizer “aquele que pertence a uma escola”. Ruth Rieth Leonhardt nos define desta maneira:A expressão escolástica é derivada da palavra escola (do latim: scola) e faz referência aos estudos desenvolvidos nas escolas medievais, principalmente as episcopais e monacais (nos bispados e nos monastérios) e, mais tarde, as universidades. (2009, p.107).Estas escolas, como nos explica REALI e ANTISERI (1990) são chamadas de monacais quando estavam anexas a uma abadia. Caso fosse a uma Catedral, eram identificadas como episcopais. Já as palatinas, anexa ao palácio, “idealizada por Carlos Magno e confiada em 781 a Alcuíno de York (730-804)” (REALI e ANTISERI, 1990, p. 479).
Nas escolas idealizadas por Carlos Magno eram ensinadas a ler e escrever, noções de latim, entendimento básico da Bíblia e ritos cristãos. Além disto, o aluno estudava o trívio e o quatrívio. O primeiro consistia de gramática, retórica e dialética; o segundo, aritmética, geometria, música e astronomia. Por fim, aprendia-se a Teologia.
2.2.1 As Universidades
É a partir das escolas que vão surgir as universidades, no século XIII. Desta forma, como é injusto atribuir à Idade Média a alcunha de idade das trevas, sendo que foi a geração desta era que nos deu aquilo que se tornou os centros acadêmicos de hoje!O graduando da universidade medieval era chamado de artista, remetendo à ideia de que quem domina as artes liberais. As primeiras universidades comumente citadas são as de Paris (França), Bolonha (Itália), Oxford e Cambridge (Inglaterra). A universidade de Paris destacou-se no século XIII pelos estudos avançados em teologia e artes, enquanto Bolonha, na mesma época, desenvolveu altos estudos em direito. (FERNADES, 2017).
2.2.2 Linha do tempo
Da mesma forma que na Patrística, no período escolástico também identificamos o início (séc. IX a VIII), o auge (séc. XIII) e o ocaso (séc. XIV a XV). Assim com Agostinho foi o principal nome do período anterior, da mesma forma temos um destaque aqui: Tomás de Aquino.2.2.3 A redescoberta de Aristóteles
Sem a menor sombra de dúvida, o que mais vai destacar quando se fala em Escolástica é a descoberta de Aristóteles por parte dos pensadores da época, em especial Tomás de Aquino e também Pedro AbelardoPara isto, contribuíram dois pensadores de origem árabe, que ao traduzirem Aristóteles, tornaram conhecíveis as obras do peripatético aos filósofos escolásticos: Avicena e Averróis.
Estes dois filósofos de origem árabe podem até ter uma obra pequena. Entretanto, a importância deles supera em muito este detalhe. Suas transliterações dos clássicos de Aristóteles tronaram possível aos filósofos cristãos uma via direta à obra aristotélica.
2.2.4 Avicena
Ibn-Sina (930-1037), ou Avicena, nasceu em Afshana, um lugar que hoje estaria no Uzbequistão. Ele era médico. “Sua capacidade intelectual precoce foi evidenciada quando ele tinha apenas 10 anos de idade, pois nesta fase de sua vida já havia decorado todo o Alcorão, o Livro Sagrado dos muçulmanos” (ISKANDAR, 2017).Crescenzzo nos diz que Avicena teria lido A metafísica (Aristóteles) quarenta vezes. Isto porque ele não conseguia compreender. De tanto ler, conseguiu entender a lógica aristotélica. Avicena descobre a necessidade de um criador e afirma, nas palavras de Crescenzzo: “As coisas naturais são necessárias e, enquanto necessárias, surgem de um processo que tem como premissa lógica a Necessidade, sendo esta última entendida como existência de Deus” (CRESCENZO, 2002, p. 39).
Avicena escreve cerca de duzentas obras, dentre elas, A filosofia iluminativa, A cura e O cânon da Medicina.
2.2.5 Averróis
Ibn Rushd (1126-1198) é natural de Córdoba, Espanha. Era neto de juiz e além da profissão do avô, também era médico. Instigado a comentar Aristóteles, produziu uma obra que foi, em muitos casos, citada literalmente por Tomás de Aquino.Averróis legou aos seus seguidores as ideias de que Deus é o motor imóvel que move o mundo que Ele não criou. Isto confronta com a fé cristã num Deus que é o criador do mundo. Neste ponto, Aquino discordou do comentarista.
2.2.6 Pedro Abelardo
Citando Pedro, o Venerável, Reali e Antiseri descrevem Abelardo da seguinte forma:"Sócrates da Franca, sumo Platão do Ocidente, moderno Aristóteles, êmulo ou maior dos dialéticos de todos os tempos; príncipe dos estudos, famoso no mundo; gênio multiforme, penetrante e agudo; tudo superava com o poder da razão e a arte da palavra - esse era Abelardo" (2003, p.162).
Abelardo tem uma extensa obra dividida, como nos relata Reale e Antiseri, que pode ser dividida em quatro áreas: lógico, teológico, ético e autobiográfico. Ele foi o primeiro a criar uma Teologia Sistemática, ou seja, sintetizar as doutrinas da Bíblia pelos seus temas. Até então, o termo teologia se aplicava “a especulação pagã ou puramente filosófica sobre a divindade” (REALE e ANTISERI, 2003, p. 162).
Não sei se foi o que Abelardo quis dizer, ou se mesmo ele alcançou tal entendimento, mas a teologia protestante distingue entre conhecimento e intimidade; fé natural e fé salvadora. Ou seja, no que diz respeito a Deus, há uma espécie de dois níveis, onde num primeiro, qualquer um pode ter acesso. Ao segundo, somente os eleitos.
Abelardo diz que os pecados só podem ser considerados com tal quando a pessoa concorda, consente com o impulso. Para ele, o desejo apenas não pode ser considerado pecado.
Para Abelardo, entendo para crer. A razão é livre. Se apropriadamente cuidada e alimentada, levará à fé. Sob a ótica da teologia, este raciocínio conclui que a salvação do inferno é um mérito humano, o que cerca de 400 anos depois irão discordar os reformadores Lutero e Calvino.
Entretanto, há dois outros temas que marcam a vida do filósofo. Um deles é seu romance com Heloísa, com quem se envolveu quando esta tinha 16 anos e ele 40. Tendo engravidado, casou-se em secreto. No entanto, o tio da moça descobrindo, mandou castrar Abelardo. Ele e Heloisa separaram-se. A criança foi dada para adoção. Abelardo torna-se monge e Heloisa, freira. O outro, são suas questões com os Universais. Nestes tempos, haviam duas correntes: realismo, que admite a existência real dos universais. O nominalismo, que não admite a existência real. Abelardo propõe assim o conceitualismo, ou seja, apesar de não possuírem os universais uma existência real, contudo na mente humana, existem.
Pedro Abelardo era francês. Tinha 63 anos quando morreu, em 1142. Heloisa e Abelardo trocaram algumas cartas após a separação. Heloisa morre 22 anos após Abelardo e é enterrada junto dele, a seu pedido.
2.2.7 Tomás de Aquino
O mugido do “Boi mudo” abalou o mundo.Tomás de Aquino, ou São Tomás, ou ainda Santo Tomás, para os Católicos sofreu bullying na juventude. Devido ao seu temperamento introvertido e sua obesidade foi chamado de “Boi mudo” até pelos familiares. No entanto, como profetizou Alberto Magno, de quem foi discípulo dedicado, quando mugiu, ao mundo inteiro se fez ouvir. Tão forte foi este mugido, que é o único a quem os Concílios Católicos exigem consulta.
Nascido em 1221 em Roccasecca, entra para a ordem dos Dominicanos a contragosto dos pais. Estes até chegam a sequestra-lo e prendê-lo para que desistisse. Diz-se uma prostituta foi levada para seu quarto, a fim de que Aquino se “contaminasse”. Ao invés de cair nas fraquezas carnais, ele expulsa a mulher, ferindo-a com um tição. Tomás levou muito a sério sua castidade.
Produziu vastíssima obra, mas do que qualquer outro Pai ou filósofo cristão, sendo a Suma Teológica sua obra prima. Tomás de Aquino morre 1274, mais precisamente aos sete de março, “no mosteiro cisterciense de Fossanova, quando viajava para Lião, para onde ia, por ordem do papa Gregório X, precisamente para participar de um Concilio” (REALE e ANTISERI, 2003, p. 212).
Tomás de Aquino tomar conhecimento das obras aristotélicas a partir de Avicena. Sem dúvida alguma o pensamento do Aristóteles exerce fortíssima influência sobre a filosofia de Aquino. Quando “Doutor Angélico[12]” elabora sua famosa Cinco Vias para provar a existência de Deus, a primeira delas é sobre o motor imóvel.
Possivelmente, Tomás de Aquino foi o mais bem-sucedido no que diz respeito a harmonização entre Fé e Razão. É preciso considerar que os argumentos tomistas das 5 vias são irrefutáveis na sua lógica. Reconhecemos que certos aspectos da teologia devem nunca serão provados racionalmente. Eles transcendem a razão. Isto que não quer dizer que somos forçados a negar sua realidade que as 5 vias nos mostram.
Pensemos no vizinho da casa 49. Ele mora no mesmo bairro que eu. Todos os dias eu passo em frente a sua casa. Eu o vejo no jardim aguando as flores. Eu o vejo sair com seu carro. Eu vejo o motoboy entregando-lhe a pizza. Ou seja, eu tenho evidências que uma pessoa existe. Todavia não sei o seu nome, o seu RG, qual sua idade... Quer dizer, fatos que eu ainda desconheço não invalida o que eu conheço. E o pouco que eu posso conhecer de meu vizinho me dá condições suficientes de dizer que ele é real.
2.2.7.1 As Cinco vias
a) Primeiro motor – tudo no universo está em movimento, ou foi posto em movimento. Um ser não se põe em movimento sozinho. Logo, tem que existir um ser que mover tudo e ele mesmo não é movido por ninguém. Este Ser é Deus.
b) Causa eficiente – todo efeito tem uma causa. Tem que existir uma causa primeira que não é causada por ninguém ou nenhuma outro. Esta Causa é Deus.
c) Contingência – tudo o que existe um dia não existiu e um dia deixará de existir. Contudo, retroagindo neste raciocínio, um dia nada teria existido. Como do nada, nada se tira, tem que ter havido um ser que criou todas as coisas. Este Ser é Deus.
d) Graduações de perfeição – a justiça, o calor, a beleza, a moral... tudo isto nos remete a graus de perfeição. A suprema perfeição delas é Deus.
e) Finalidade das coisas – tudo o que existe, existe para uma finalidade. Tudo o que existe, tem ordem, sugere uma arquitetura. Logo, tem que existir um ser que ordenou, arquitetou toda a criação. Este ser é Deus.
Se pudermos resumir Aquino, podemos dizer que ele foi o filósofo que mais chegou perto do objetivo de demostrar o que a Bíblia fala: “Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento proclama a obra das suas mãos”[13].Aquino também tratou da imortalidade da alma e da questão dos universais. Escreveu nas áreas da filosofia, metafísica, física, teologia, ética e política.
Segundo o tomista contemporâneo, Carlos Nougue, a frase de Aquino de que queimaria o que escreveu não se trata de um arrependimento ou reconhecimento de erro. No fim de sua vida, ele teve profundas experiências místicas, só comparáveis a Moisés e o Apóstolo Paulo. Diante das revelações, sobre as quais nada escreveu, tão maravilhosas, sua obra pareceria palha (NOUGUE, 2017).
2.2.8 Guilherme de Ockham – o ocaso da Escolástica
Se pudemos dizer que Tomás de Aquino é o personagem mais importante da filosofia cristã, especialmente no que diz respeito a harmonização entre fé e razão, infelizmente, por um lado, ele chegou no fim do tempo.Guilherme de Ockham vai nascer cerca de no máximo 11 anos após a morte do Doutor Aquino e acentua o que o contemporâneo de Aquino, Duns Scotus (1266 -1308), iniciou: a separação entre fé e razão.
Com a chegada do século XIV, inicia-se grandes descobertas científicas, que dará inicia à ciência moderna. É Ockham que inicia o processo de buscar as evidência para demonstrar uma proposição. Ele se torna um empirista radical, ou seja, exige-se prova concreta para tudo. Praticamente, aquilo que não se consegue provar concretamente, não existe.
Assim, ele separa as coisas: a fé cuida da teologia; a razão da filosofia. Desta forma, ele não está negando a existência de Deus. Se o fizesse a fogueira estaria logo ali. Porém, o estrago já estava feito.
Guilherme de Ockham morreu em 1347, Munique, Alemanha, vítima da peste negra. Segundo REALE e ANTISERI, “realizou seus estudos universitários em Oxford e entre 1317 e 1324 escreveu a Lectura libri sententiarum, a expositio aurea e a expositio super phisicam, como também a ordinatio e Os Quodlibeta”(2003, p. 298).
3 Conclusão
Quando se fala em fé e razão como opostas entre si, parece que este conceito tem início no fim dó século XIII, como acabamos de ver. Assim temos uma tão grande nuvem de testemunhas que, guardadas pequenas variações, nunca viram fé e razão como opostos. Nem mesmo como duas “coisas” completamente separadas ou heterogêneas.Quando se pensa em fé na perspectiva do que vou chamar de crendice, ou seja, aquele tipo de crença animistas que pensa que o rio é um deus, ou que o Deus é o planeta, sem dúvida que isto é um campo muito particular.
Mas quando se fala da acepção que a Bíblia faz de fé, conforme definido em Hebreus 11.1: “Ora, a fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos", vemos que ela a fé, é essencialmente racional (da razão).
Quando alguém entra num avião, não se pergunta se todas as revisões foram feitas. Acredita-se que sim. Não se pergunta se é o primeiro voo do comandante. Acredita-se que não.Confia-se e presume-se que está tanto a aeronave quanto a tripulação estão em perfeitas condições e aptos para levantar voo.
Sabe-se que duas retas paralelas jamais se encontrão, porém ninguém será capaz de ver o fim, nem checar se é falsa tal afirmação. Crê-se que é assim.
Não é poque não posso ver Deus que ele não exista. As provas que nos deram os filósofos, em especial Agostinho e Tomás de Aquino são firme fundamentos do que esperamos e certeza do que não vemos. É esta fé de que fala a Bíblia. Eu creio que toda vez que entro num avião que o piloto é competente e treinado, apesar de eu não ter visto isto. Eu creio no axioma matemático que duas retas não se encontram, nem aqui nem no infinito, apesar de eu jamais poder chegar lá. Desta forma, a proposta da filosofia cristã expressa pelos Pais e Escolásticos é: eu creio em Deus, apesar de não o ver fisicamente, porque as evidências filosóficas me dizem que devo.
Referências
Significados. Disponivel em: <www.significados.com.br>. Acesso em: 17 out. 2017.
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CHAUI, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
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[1] BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1988.
[2] IBID.
[3] IBID.
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[7] BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil. 1988.
[8] Refiro-me aos 11 Apóstolos escolhidos diretamente por Cristo, conforme relata os Evangelhos de Mateus 10.2-4 e Lucas 6.14-16 e o Apóstolo Paulo. Judas Iscariotes, que estava incluindo na lista inicial, suicidou-se e por isso não é contado.
[9] “Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis” – Galátas 5.17 - A BÍBLIA. Tradução Almeida Corrigida e Fiel. Disponível: <https://www.bibliaonline.com.br/acf/gl/5/17>. Acesso em 26 out. 2017.
[10] A BÍBLIA. Tradução Vulgata Latina. Epistula ad Romanos, 13.13,14 - Bíblia Católica Online. Disponível:< https://www.bibliacatolica.com.br/vulgata-latina/epistula-ad-romanos/13/>. Acesso em 26 out. 2017.
[11] A BÍBLIA. Nova Tradução na Linguagem de Hoje. SBB.
[12] Uma referência a Aquino devido à sua personalidade amistosa e defesa da teologia
[13]A BÍBLIA. Tradução Nova Versão Internac. Disponível: <https://www.bibliaonline.com.br/nvi/sl/19/1>. Acesso em 05 set. 2017
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